quinta-feira, 5 de maio de 2016

O Velho que Trazia a Noite – Sérgio Capparelli

Capa de recente edição, pela editora Global, 2004.
Capa de edição pela
editora Global, 2004.
Neste livro, ao explorar o imaginário infantil, visando o destaque dos mitos que o envolvem, o autor decide pela utilização da poesia como ferramenta de interação com tais aspectos do universo em questão. A poesia exibida no livro trabalha com a imagem metafórica, incentivando a criança a voltar o seu olhar para um patamar mais simbólico que, de certo modo, culmina no diálogo com a sua própria interioridade. A Leitura desta obra, portanto, exige um leitor minimamente familiarizado com a escrita e que já consiga se sentir à vontade diante das abstrações, para que possa, assim, depreender seus significados.

Publicado originalmente em 1994 pela editora Kuarup, de Porto Alegre, acompanhando ilustrações de Cecília Iwashita, o livro se mostrou bem recebido pela crítica, sendo prestigiado com as seguintes premiações:

  • Prêmio Odylo Costa, filho - "O Melhor Livro de Poesia" - FNLIJ – 1994 
  • Lista de Honra do IBBY- Indicação de autor - 1996

Em 1995, ano seguinte à sua publicação, o livro é alvo de uma breve resenha elaborada pela escritora Glória Kirinus, publicada na revista “Letras”, volume 44, pela editora da UFPR, a qual é reproduzida a seguir, mediante algumas adaptações. Ao final, a escritora relaciona o método de construção de Capparelli com uma característica comum na obra do escritor norte-americano Allan Poe:

/Toc, toc, toc, toc, toc/. Com este verso inicial Sérgio Capparelli convida o leitor novo, o leitor velho - o novo e o velho leitor - para ler, ver e ouvir sua história composta em vinte capítulos.
A ilustração que acompanha os primeiros versos mostra o velho, aquele que trazia a noite, descendo as escadas com sua perna de pau. Texto e ilustração habilmente se condensam nas palavras do menino que, em diálogo com sua mãe e com seu próprio medo, se pergunta: era então o velho/de roupa preta/que acabava com o dia?// (...) /toc. toc na calçada; toc, toc, no meu medo//.
Logo, o menino, amparado pelo dia, esquece o medo noturno e brinca à vontade rimando suas palavras de menino: E o velho veio, perneta/desceu o velho perneta/calça rasgada e capa preta// para logo concluir com sua lógica infantil, isto é, com a lógica analógica da poesia, a respeito do velho da noite: /Certamente queria/passar/a perna no dia//.
Do terceiro ao sexto capítulo o autor explora inusitadamente as possibilidades gráficas que a escrita no computador permite. Ele des-comporta os versos que até aqui vinham lineares e os re-acomoda no espaço da página, de maneira inusitada: vertical, horizontal, diagonal e até circular. Mas não é apenas esta visualização que chama a atenção do leitor. Ao pé das mesmas páginas, versos comportados mostram requintado lirismo. Comboio de nuvens/chovendo alfazema! ou então Cavalos perrengues/rinchando de câimbra//.
Quando o leitor chega ao capítulo sete onde o velho perneta encara o céu e dialoga com ele, com gestos e palavras, dois versos o espantam e cativam: /UUUUUUUUUU/UUUUUUUUU//. Eles sintetizam na força da onomatopéia e na força visual o significado dos versos que os precedem: /...com lobos famintos/uivando pra lua// ou então/Constelação do cão que gania/e ainda// lobisomens de pêlo nas ventas//. Assim, bem ao gosto de Grammont, sonoridade, visualidade e sentimentos caminham juntos.

Da VIII até a XIV parte da história reaparece a mãe do menino oferecendo imagens mais cálidas e claras à narrativa: ela acende o fogo, atiça a luz das lamparinas e traz o dia, dando à luz novas crianças. Sim, no seu oficio de parteira ela - à diferença do velho que traz a noite - retira do escuro o dia e a vida. Os versos que acompanham a voz da mãe também nascem vivos, com todo o vigor da oralidade popular: /Dona Ciei, vem "digeiro "/Tunica tá "perdeno " sangue!/e/Prepara água quente, Ceição!/"já tô ino.já tô ino"//.

A leitura dos últimos capítulos da história lembra ao leitor outra leitura paralela, aquela que o acompanha dissimuladamente, página a página, desde o começo da leitura. Sim, além da leitura da ilustração, fiel ao texto, aparece outra ilustração menor, circular e tangencial. Trata-se de uma lua, que, à maneira de um espelho, retrata o mundo, a intimidade do indivíduo, os dramas humanos.

Essa testemunha de face escondida se revela plena quando o universo participa de um ritual especial. O ritual da morte do velho perneta. Neste contexto, a lua que já vinha semi-aparecendo, numa espécie de síntese poética, multiplicadora de significados, se expõe ativa e contundente: /a lua escondeu o sol/e eclipsou-se o dia//.

O velho que trazia a noite solicita do leitor uma renovada percepção do universo textual - ler, ver, ouvir e resgatar palavras, histórias e devaneios do passado, desencantando medos, faz parte do complexo e fascinante circuito de quem permite a entrada deste livro.

Blanchot sabe o que diz: "para escrever um único verso é necessário ter visto muitas cidades, homens, coisas". É preciso também, aprisionar os nomes próprios dos pássaros, das flores, das ervas, das pessoas - primeiras metáforas da humanidade - e saber saborear as vozes do cotidiano -/Mas precisamos conseguir arruda/alecrim; precisamos de benzeção/da comadre Ceição// assim como ouvir atentos o colóquio de grilos e sapos no limite entre o dia e a noite.

Sérgio Capparelli sabe de tudo isto, e sabe mais... Ele enrola a intensidade da imagem poética, o signo redimensionado, a palavra primordial num único e novo novelo semiótico - o texto que perdura - sem desconsiderar aquela "unidade de efeito" tão apreciada por E. A. Poe.


Bibliografia:
Letras, Curitiba, n.44, p.245-247. 1995. Editora da UFPR
http://www.revistaletras.ufpr.br/
http://www.fnlij.org.br/

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